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Com as próprias mãos

Yasmin Santos

Eram quatro e meia da madrugada de 3 de outubro de 1964 quando um grupo de policiais disparou cerca de cem tiros contra Manoel Moreira. Mais conhecido como Cara de Cavalo, o bandido era acusado de ter matado um dos grandes heróis da corporação, o detetive Milton Le Cocq. Luarlindo Ernesto, então com 21 anos e repórter do Ultima Hora, era uma das poucas testemunhas a presenciar a execução sumária.

Foi graças à investigação de jornalistas que a polícia chegou ao esconderijo de Cara de Cavalo em Búzios, à época apenas um balneário de Cabo Frio. A caçada ao bandido foi uma das maiores que o Rio conheceu. Cerca de dois mil homens de todas as delegacias e divisões da Secretaria de Segurança foram mobilizados para a operação. Quatro estados participaram da perseguição.

O intervalo de poucas semanas entre o assassinato do detetive e a execução do bandido guardam uma tragédia moderna. O dito herói começou a morrer no dia em que um bicheiro o procurou para pedir providências contra Cara de Cavalo. O contraventor, protegido por Le Cocq, reclamava de extorsão exagerada. Manoel Moreira já estava jurado de morte por essa ala da contravenção, pois defendia interesses de outros grupos.

Le Cocq passou a persegui-lo em uma noite de quinta-feira acompanhado de outros dois parceiros. Na fuga, de dentro de um taxi, Cara de Cavalo atirou a esmo na direção do fusca dos policiais. Le Cocq tombou morto com um tiro de Colt 45, supostamente disparado por Cara de Cavalo.

Esse tiro, como escreve Zuenir Ventura no livro Cidade Partida, atingiu também o amor-próprio da corporação. O mocinho perdeu o duelo para um bandido pé-de-chinelo. Uma morte sem glória. Sua última missão foi um mandado do jogo do bicho.


 

Milton Le Cocq bom e corajoso era o maior caçador de bandidos”, trazia a manchete do dia 31 de agosto do jornal O Dia. Bom e corajoso. Em poucas palavras a imprensa marca seu ponto: era uma caçada do bem contra o mal. Na manchete do dia 4 de setembro, o mesmo jornal vibra: “Comandada pelo governador espetacular caçada ao Cara de Cavalo! Momentos de emoção e angústia na Rua Mariz e Barros”. 

 

As reportagens que se seguiram ao enterro de Le Cocq tinham a mesma linha. Apresentavam extensas biografias do “bom e corajoso” policial morto: a dedicação à polícia nos dez anos em que pertencera à Delegacia de Vigilância e Capturas, a modéstia, a perspicácia e inteligência nas investigações – “ele conhecia

um bandido até pelo modo de andar” –, a capacidade de liderança, a coragem em enfrentar os piores elementos do mundo do crime. 

 

A coragem era a qualidade mais citada da excelência de um policial. E foi exatamente essa atribuída coragem de Le Cocq que fez com que, em 1958, o Chefe do Departamento Federal da Segurança Pública, o General Amaury Kruel, o convidasse para integrar o Serviço de Diligências Especiais. “O objetivo básico do SDE era acabar com o número elevado de marginais nas favelas e capturar os facínoras mais terríveis, baseando-se no princípio de que o grande bandido é irrecuperável e sua prisão só acarreta despesas ao Estado, devendo ser eliminado”, explicou uma reportagem do Jornal do Brasil de 1966.

 

A violência não era prática estranha a uma corporação que mantinha em seus quadros os egressos da PE, a truculenta Polícia Especial do Estado Novo, terror de prisioneiros políticos. Mas ela ganhava agora legitimidade. Tão grave quanto o direito de matar – que acabava precisando de álibis como confrontos e escaramuças – era o direito de julgar. Coberto pela impunidade institucional, cada policial passava a acumular várias instâncias: investigação, julgamento, decretação da pena e sua execução.

 

O SDE contava com trinta funcionários e tinha em seus quadros vários policiais envolvidos em processos de extorsão, suborno e estelionato. Articulando corrupção e violência, o SDE reuniu homens violentos e decididos a exterminar os bandidos do Rio e adjacências. Esses Homens de Ouro ou Turma da Pesada, também conhecidos como Esquadrão da Morte, subiriam morros, invadiriam barracos e desentocariam supostos assaltantes, caçando-os como ratos. Limpariam a cidade.


 

Mitificados pela polícia, amplificados pela imprensa e admirados nos morros, Perpétuo e Le Cocq disputaram entre si o papel de mito. Perpétuo era um caçador; Le Cocq, um matador. “Perpétuo prendeu bandido sem dar um tiro”, dizia o repórter Octávio Ribeiro. Trabalhava com informantes, os “cachorrinhos”. Com Le Cocq era diferente. “Chegava com a turma, cercava o barraco e se houvesse a mínima resistência, ia atirando”. Segundo Octávio, Perpétuo foi “um dos primeiros policiais a reconhecer o poder da imprensa”.

 

Perpétuo de Freitas fora chefe da Vigilância no início da década; ele e LeCocq saíam para caçar bandidos e esclarecer crimes, ocasião em que foram saudados como um “novo esquadrão da morte”. O anterior perdera força desde o julgamento do detetive Eurípedes Malta e outras investigações, mas as atividades do esquadrão da morte continuaram com outros policiais.

 

Milton Le Cocq de Oliveira, por suas ações e ensinamentos, ficou na memória da polícia carioca como paradigma. Em sua homenagem foi criada a Scuderie Le Cocq, tendo como símbolo uma caveira com duas tíbias – símbolo esse curiosamente similar ao que ainda hoje é usado pelo Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro).

 

O detetive tinha estratégia e pedagogia próprias. Ao contrário de seu rival, detesteva publicidade. Mas os dois supunham-se heróis ao enfrentar o crime. Sem recursos técnicos, procuravam sobrepujar com astúcia o adversário. Dos dois restaram mais lendas que biografias.

 

Perpétuo fazia na imprensa a figura do bom policial. Mostrava-se compreensivo e protetor, fazia amigos nas favelas e subúrbios e mantinha uma extensa rede de alcaguetes nesses locais, com os quais conseguia seus feitos. Em 1967, um filme de Miguel Borges, Perpétuo contra o Esquadrão da Morte, consagrou essa imagem do policial “firme, mas humano”.

 

Se a morte de Le Cocq deu origem a uma das maiores caçadas cariocas, o assassinato de Perpétuo catalisou a perseguição. 

 

No dia de sua morte, Perpétuo seguia uma pista para prender Cara de Cavalo no Morro do Esqueleto, onde este residia. Passou horas na tocaia quando chegou o grupo de policiais da Invernada que pretendiam vingar LeCocq, inclusive um novato, Jorge Galante Gomes, que atirou a sangue frio no detetive após uma discussão. Perpétuo queria Manoel Moreira vivo para ser julgado, o grupo da Invernada, queria matar Cara de Cavalo como uma retaliação exemplar.

 

Um fato divulgado na época com discrição fora o resultado da necrópsia de Le Cocq: duas balas estavam em seu corpo, uma de pistola 45 e outra, uma bala de arma da polícia. A bala da 45 foi considerada fatal. A outra foi tida como um acidente devido ao intenso tiroteio que se seguiu à morte do detetive. A mera possibilidade de ele ter sido morto pelos próprios companheiros acirrou ainda mais o desejo de vingança.

 

Um fantasma assombrava o caso: dois policiais teriam sido mortos por dois policiais.


 

Apesar do apelido pejorativo, o rosto de Manoel Moreira sequer se assemelhava a um cavalo. Mas a alcunha pegou, alcunha que se repetia para alguns outros marginais com uma cara comprida. Como escreve a socióloga Beatriz Carneiro, o apelido fazia o delinquente na imprensa policial. O nome verdadeiro pouco importava, era a alcunha que criava uma intimidade com o público dos jornais. “Mineirinho”, “Paraibinha”, “Micuçu”, “Buck Jones”, “Bidu”, “Miguelzinho”, “Caveirinha”, “Rei dos Bodes”. O termo Cara de Cavalo apelidava várias pessoas que nas notícias apareciam como uma só, sob a mesma alcunha. Ao menos três homens receberam o mesmo apelido de Manoel Moreira: Ivan Timóteo, Gerson Andrade Duque e Jorge Gama da Silva.

 

Nas notícias da perseguição policial a Manoel Moreira, os crimes atribuídos a todos os Caras de Cavalo que circularam na imprensa naqueles últimos anos se condensaram em apenas um corpo. A edição de 2 de setembro de 1964 do Jornal do Brasil atribuía mais de 15 crimes a Manoel Moreira. No texto, afirmava-se que mais de 400 prisões já haviam sido feitas, a maioria de indivíduos autuados por vadiagem. “A disposição dos policiais, além de capturar o assassino de LeCocq é fazer uma limpeza na cidade livrando-a de marginais que agem nos subúrbios”. Limpeza. Higienização social.

 

No decorrer da caçada, a família de Manoel Moreira procurou um advogado que encontrou seis homônimos sentenciados e nenhum deles seria o procurado. O número de registro prisional que apareceu em jornais não era o dele, e a ficha criminal não foi encontrada.

 

A socióloga Beatriz Carneiro aponta ainda que a foto usada pelo jornal Ultima Hora na edição do dia 2 de setembro de 1964 mostra um rosto que não se parece com a efígie do documento de identidade de Manoel Moreira. “Pouco importava rosto ou nome, desde que o corpo crivado de balas fosse o corpo a cuja mão atribui-se o tiro fatal”, escreveu a pesquisadora.

 

Cara de Cavalo era, de fato, um criminoso, mas apontado por muitos como um bandido chifrim. Ladrão, não gostava de roubar. Cumpria uma rotina segura percorrendo os pontos de jogo do bicho de Vila Isabel e arredores. Assustava mais pela fama do que pelos feitos. Para Zuenir Ventura, ele levava a vida que um bandido preguiçoso pedira a Deus: “pouco trabalho, muitas mulheres e um dinheiro certo, sem risco”. 

 

“Sua fama era grande entre policiais e malandros, mas seu poder não passava da Central do Brasil. Jamais tomou uma condução que o levasse à Zona Sul. Ficava ali pela região de Maracanã e Vila Isabel; no máximo, se aventurava por Andaraí, Tijuca e Grajaú. Se iniciara garoto no comércio ilícito de maconha na Central: era fornecedor de malandros e prostitutas. Ia muito à Lapa e fazia ponto no Mangue, onde descobriu que, tanto quanto a droga, o sexo podia lhe render dinheiro. Foi um dos mais jovens cafetães da folclórica zona do meretrício carioca”, escreve Ventura.

 

A mera descrição da efígie borrada de um jovem mulato de cabelos curtos serviu de guia para a prisão de mais de 50 pessoas apenas dois dias depois da morte de Le Cocq. A edição do dia 31 de agosto do Jornal do Brasil estampava a manchete: “Metralhado falso Cara de Cavalo”.

 

Um desconhecido parecido com Cara de Cavalo foi morto com vários tiros, segundo algumas testemunhas, dados por elementos dentro de um carro preto. A edição do dia 6 de setembro do jornal A Notícia traz a morte de mais um suposto marginal, “cumprindo a promessa da polícia de que para cada policial morto dez bandidos morrerão”.

 

Cara de Cavalo era negro. Mulato. Pardo. Magro, cabelo cortado rente ao crânio. Até que ponto eu também não sou Cara de Cavalo?


 

Na madrugada do dia 7 de abril de 2018, policiais da Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense saíram de Belford Roxo em direção à rua Fernanda, em Santa Cruz, na Zona Oeste, bairro onde está o coração da maior milícia do estado.

 

Os agentes iam checar uma informação recebida por um informante da polícia: dois dos principais nomes da organização criminosa e vários milicianos estariam em uma festa no Sítio Três Irmãos, com shows de pagode e outras atrações, com ingresso cobrado a R$ 10.

 

A polícia procurava por dois líderes do grupo: Wellington da Silva Braga, o Ecko, então chefe da milícia em Campo Grande, Santa Cruz e outros bairros da Zona Oeste; e Danilo Dias Lima, conhecido como "Tandera" ou "Danilo do Jesuítas", responsável pela quadrilha em Nova Iguaçu e Seropédica, uma franquia da milícia na Baixada Fluminense.

 

A operação não conseguiu prender os líderes, mas deteve 159 homens. A foto divulgada pela polícia atestava a missão como vitoriosa: dezenas de homens sem camisa deitados de barriga para baixo no gramado e outros tantos sentados de costas, virados para uma parede branca. A maioria negros. Mulatos. Pardos. Cabelos cortados rente ao crânio. O número de detidos na ação foi tão grande que foram precisos dois ônibus para fazer o transporte dos suspeitos até a Cidade da Polícia.

 

Era para ser apenas mais um show de pagode na Zona Oeste. Quem pagar o ingresso, entra, quem não tem, rala. Um primo meu, também negro, cabelo cortado rente ao crânio, por pouco não estava lá. Tinha ingresso comprado e tudo. Meu irmão, também negro, cabelo cortado rente ao crânio, cogitou ir. A única relação que os dois têm com a milícia é o fato de morarem num bairro chefiado por ela. No entanto, se lá estivessem certamente seriam detidos pela polícia e enquandrados como milicianos, assim como aconteceu com seus colegas.

 

Após a operação, o show de pagode foi noticiado como “festa da milícia”, e os 159 homens detidos rapidamente foram enquadrados como milicianos. Simples assim.

 

Quando cheguei à redação no dia seguinte, a versão que imperava ainda era a da polícia. Muitos daqueles jornalistas não tinham interesse em complexificar o ocorrido. Para eles, eram todos bandidos e pronto. Moram do lado de lá da Avenida Brasil, do outro lado do túnel. Por que eu deveria me importar?

 

Ignoravam que do lado de cá não há o que se fazer sem autorização da milícia. Ignoravam que a polícia age muitas vezes de forma arbitrária, com abuso de poder. Ignoravam que não havia provas que incriminassem todos aqueles homens, cujos corpos eram exibidos como troféu.

 

Um ano depois da operação, o portal G1 noticiou que menos de 5% dos que chegaram a ser detidos seriam condenados por participarem efetivamente da milícia da região. Os líderes da milícia que a Polícia Civil buscava prender continuavam soltos, e o domínio da quadrilha na região havia sido ampliado.

 

Passados 18 dias do evento, o Ministério Público estadual pediu à Justiça a revogação da prisão preventiva de 138 dos 159 presos. Para o MP, não havia, até aquele momento, provas "efetivas" que permitissem a denúncia contra 138 pessoas. Segundo um documento da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas, a maioria dos presos não tinha nenhum antecedente criminal ou conexões que os ligassem à milícia da região.

 

"Preferia não falar mais sobre isso, porque foi um trauma muito grande. Eu passei por tudo isso nesse tempo todinho", disse ao G1 a mãe de um dos homens que chegaram a ser presos, mas foi absolvido durante o trâmite do processo. Ela não quis se identificar.

 

Cento e trinta e oito pessoas ficaram três semanas presas injustamente. 

 

Cento e onze foi o número de disparos da polícia contra cinco jovens em 2015. Oitenta e um vindo de fuzis e trinta de pistolas. Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, Wilton e Wesley eram moradores do Morro da Lagartixa, no Complexo da Pedreira, em Costa Barros. Roberto há um mês trabalhava num supermercado, que lhe pagava o curso de auxiliar de administração. No sábado de 28 de novembro de 2015, ele e os outros quatro jovens passaram o dia no Parque Madureira para comemorar o seu primeiro salário.

 

Fim de tarde, os cinco jovens vão embora no Palio Branco dirigido por Wilton acompanhados de uma moto dirigida por Wilkerson, irmão de Wilton, com seu amigo Lourival na garupa. Já chegando perto de casa se encontraram com quatro policiais militares do 41º Batalhão, de Irajá.

 

Antes do fatídico encontro, os policiais estavam à procura de assaltantes que estariam saqueando um caminhão da Ambev, possivelmente em Costa Barros. Eles tinham apenas uma pista: os responsáveis estavam em um carro e uma motocicleta.

 

Por volta das 21 horas, na Avenida José Arantes de Melo, próximo ao Morro da Lagartixa, os policiais encontraram os cinco jovens no Palio branco e os dois amigos na moto. Os jovens receberam ordem de parada e assim fizeram. Em seguida, 111 tiros foram disparados. Um desses tiros foi parar no para-choque traseiro da moto de Wilkerson, que conseguiu fugir.

 

Duzentos e cinquenta e sete foi o número de disparos feitos por militares do Exército contra o carro do músico Evaldo Rosa. O Ford Ka de Evaldo passava pela Estrada do Camboatá com cinco ocupantes quando os militares abriram fogo. O músico foi alvejado e morreu na hora. O passageiro Sérgio Gonçalves ficou ferido e Luciano Macedo, que passava pelo local e tentou prestar socorro, também foi baleado e morreu onze dias depois.Os ocupantes do veículo e as testemunhas afirmaram que os militares iniciaram os disparos abruptamente, pelas costas, sem nenhuma sinalização ou advertência anterior, e não pararam de atirar nem mesmo após a saída da esposa, grávida, e do filho do músico do carro. Sessenta e dois tiros perfuraram o automóvel.

 

O Comando Militar do Leste alegou que os militares, em patrulhamento regular, haviam se deparado com um roubo nas imediações e que as vítimas iniciaram a troca de tiros. No entanto, após apuração, a ideia foi refutada, determinando-se, em seguida, a prisão em flagrante de dez dos doze militares envolvidos.

 

Dos mais de cem tiros disparados pelos policiais, 61 acertaram Cara de Cavalo em pontos vitais do tórax, apenas um na cabeça para não dificultar o reconhecimento. Cada policial da Turma da Pesada atirou várias vezes, até uma arma de LeCocq foi levada e usada na fuzilaria que durou quinze minutos. O delegado Sivuca, que seria eleito deputado estadual com a plataforma “Bandido bom é bandido morto”, contaria mais tarde com prazer: “Então todo mundo atirou no bandido. Mais de cem tiros. O umbigo do cara ficou colado na parede”. Para Beatriz Carneiro, nesses quinze minutos iluminados pelo fogo dos tiros, o exagero do espetáculo escancarou o que a justiça penal e as execuções na sombria surdina tentam sempre amainar: o gozo de uma execução como medida punitiva. 

 

Misturo intencionalmente casos de inocentes e bandidos porque em ambos o que impera é a lógica da necropolítica, conceito cunhado pelo filósofo camaronense Achille Mbembe. O Estado brasileiro adota uma política de morte, de uso ilegítimo da força. Separa quem é amigo e inimigo. A licença para matar tem endereço e densidade negra. Para a jornalista e pesquisadora Rosane Borges, a nossa polícia substitui o capitão do mato.

 

Bandido ou inocente, nenhum deles merecia morrer pela mão de ninguém, muito menos pelo Estado e de forma tão truculenta. “Suponho que é em mim [...] que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineiriho do que seus crimes”, escreveu Clarice Lispector numa sentida crônica na revista Senhor.

 

Se culpados, há a justiça para julgá-los e condená-los, como estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal. O Código de Ética do Jornalista Brasileiro é regido por esses dois documentos. Por isso, é inadmissível que a imprensa ainda hoje relativize assassinatos e extermínios cometidos pelas forças do Estado. A lógica de quem merece morrer e quem merece viver também encontra morada nas principais redações do país.


 

O jornal Ultima Hora encarregou-se de ampliar a imagem notadamente negativa de Cara de Cavalo com a finalidade de elevar suas vendas. Durante uma entrevista ao Pasquim em 1983, Amado Ribeiro, então chefe da seção de polícia do jornal, foi provocado pela equipe como uma espécie de relações-públicas do Esquadrão da Morte. Amado se defendeu: “Sou empregado de empresas jornalísticas, que querem vender jornal. Se o Esquadrão vende jornal, tô lá. Se não, não tô”. 

 

A reposta evidencia o interesse mercadológico do veículo. Como toda instituição, a imprensa não é isenta de interesses. Há alguns anos as faculdades de jornalismo discutem como a imparcialidade é inalcalçável. Pesquisadores hoje defendem que o que chamamos de objetividade jornalística tem cor e gênero muito bem definidos. Com ideais fundados a partir de correntes filosóficas positivistas e iluministas, o que era considerado objetivo, correto, imparcial privilegiava homens brancos. 

 

Não é à toa que a imparcialidade jornalística permite que jovens negros presos com drogas possam ser nomeados como traficantes e jovens brancos com as mesmas substâncias devam ser identificados como estudantes; que casos de violação de direitos humanos ocorridos em zonas centrais do Rio mobilizem facilmente a imprensa, mas que chacinas e extermínios em outras localidades precisem da pressão de movimentos sociais para que a imprensa seja estimulada a cobri-los com profundidade. Deixar morrer e deixar viver. Quem conferiu esse poder à imprensa?

 

Muitas das mortes do Esquadrão da Morte ocupavam destaque nas primeiras páginas dos jornais. E os leitores acompanhavam os casos ávidos por mais detalhes, pelo desenrolar da história, como se fosse uma novela. Os jornais operavam numa lógica sensacionalista, estratégia que prioriza a cobertura de crimes e hiperboliza a violência, ocorrendo também a valorização da emoção e de conteúdos descontextutalizados, a exploração do extraordinário e do sofrimento humano, a troca do primordial pelo supérfluo, a inversão do conteúdo pela forma, o denuncismo e a banalização da violência.

 

Se o sensaconalismo vendia, era isso que os chefes exigiam dos repórteres. Cenas inverossímeis, mas espetacularmente cinematográficas, banalizavam as mortes provocadas pelo Esquadrão. Aqueles corpos eram dos que podiam ser mortos, e muitas vezes esses casos eram apresentados em oposição à morte de pessoas inocentes.

 

O próprio nome Esquadrão da Morte foi construído pelo discurso jornalístico para denominar os diversos grupos de extermínio que surgiram a partir da década de 1950 com a justificativa de acabar com marginais considerados irrecuperáveis, e promover a segurança e a ordem pública no Rio. Em entrevista ao Pasquim, Amado Ribeiro descreveu algumas das características relacionadas a esses indivíduos matáveis: homens com unhas sujas, barba por fazer, pele encardida e sem tomar banho. O repórter contou ainda que presenciou muitas execuções do Esquadrão em que saiu “com o sapato cheio de miolo e de tripa de gente”. Foi questionado então se os miolos seriam apenas de pretos e pobres. Amado rebate: “Você conhece algum rico que esteja preso no Brasil?”

 

Quando o Esquadrão da Morte diz à população que ela não tem nada a temer, porque eles só assassinam marginais considerados irrecuperáveis, é preciso entender também a que população eles se referem. Esses grupos de extermínio eram uma ferramenta de higienização social, uma desculpa para matar preto e pobre. Não surpreende que a Scuderie Le Cocq, associação sediada num casarão no Rio Comprido, tenha atraído tantos membros. Luarlindo, que visitou o local a trabalho algumas poucas vezes, conta que a rua da Scuderie ficava lotada de carros em dia de encontros. Carro, aliás, era o único transporte possível para chegar naquele endereço à época. O local já estabelecia quem podia frequentá-lo.


 

O artista plástico Hélio Oiticica não se conformava com a representação de Manoel Moreira como “o inimigo número um da cidade”: “O que me deixava perplexo era o contraste entre o que eu conhecia dele como amigo e a imagem feita pela sociedade”. Um ano depois de sua morte, Oiticica imortalizou-o na obra Homenagem a Cara de Cavalo. É um bólide, uma caixa envolta por uma tela e cujas paredes internas estão cobertas com quatro reproduções da foto oficial do bandido assassinado: estirado no chão, perfurado de balas, com os braços estendidos em forma de cruz. No fundo da caixa, num saco com pigmentos vermelhos, aparece escrito como numa lápide: “Aqui está e aqui ficará. Contemplai o seu silêncio heróico”.

 

Passista da Mangueira, companheiro de malandros e bandidos, frequentador de favelas, Oiticica foi “foi o maior inventor de arte brasileira, um dos maiores da arte contemporânea em todo o mundo”, segundo o crítico Frederico de Morais. Radical, ele considerava a arte como revolta e essa revolta era, na opinião de Morais, “semelhante à do bandido que rouba e mata, em busca de felicidade, mas também à do revolucionário político”.

 

O que motivou a homenagem à Cara de Cavalo foi “a maneira pela qual essa sociedade castrou toda possibilidade de sua sobrevivência como se ele fora uma lepra, um mal incurável — imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradados princípios como é a nossa, colaboraram para torna-lo o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente com todo requinte canibalesco. Há como que um gozo social nisso [...] a homenagem, longe do romantismo que a muitos faz parecer, seria um modo de objetivar o problema, mais do que lamentar um crime sociedade X marginal”, escreveu Oiticica.

 

Neville D’Almeida talvez tenha dito uma das frases mais surpreendentes das entrevistas que fiz ao longo dessas semanas. Para o cineasta, amigo e contemporâneo de Oiticica, Cara de Cavalo é um poeta. Agora entendo o que ele quis dizer.

 

Cara de Cavalo é um poeta justamente por sua imperfeição, por não ser modelo para ninguém. Em toda a caçada, desde a encomenda de sua morte por um contraventor ao fuzilamento pela polícia a sangue frio, escancarou, sem dizer sequer uma única palavra, o fascismo brasileiro. Uma poesia fúnebre eternizada pelo amigo Hélio Oiticica: “Aqui está e aqui ficará. Contemplai o seu silêncio heróico”.

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